Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do Amaral
Doutora em Direito Civil pela PUC-SP; Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina; Professora e Pesquisadora do Programa de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina; e-mail: anaclaudiazuin@live.com.
Rafael Kenji Freiberger Nagashima
Mestrando do Programa de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina – PR; Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania; Pós-Graduado em Direito Médico pela Faculdade Verbo Educacional; Advogado; e-mail: rafael@sokolowski.adv.br.
RESUMO: A doutrina vem apontando a importância de se reconhecer na responsabilidade civil um instrumento que vai além da neutralidade de ressarcimento de danos, servindo ainda como ferramenta adequada para inibir e censurar condutas contraditórias ao Direito, como forma efetiva de prevenção de danos. A erosão do pressuposto da culpa, no entanto, diante da forte tendência de objetivação da responsabilidade, é apontada por alguns autores como obstáculo para o reconhecimento e incorporação dessas novas funções à responsabilidade civil. A aplicação da pena, qualquer que seja sua natureza, dirige-se ao constrangimento de um comportamento a ser repreendido, cuja análise, todavia, pode ser irrelevante nas hipóteses de aplicação da teoria do risco. Este artigo investiga se a responsabilidade objetiva poderia ser um impeditivo para o conteúdo punitivo/ preventivo das condenações por danos extrapatrimoniais. Por meio do método dedutivo, com pesquisa em bibliografia nacional e estrangeira, demonstrou-se a possibilidade de sanção de condutas pela coexistência dos sistemas de responsabilidade objetiva e subjetiva, bem como a necessidade de os magistrados fundamentarem adequadamente as decisões envolvendo este tema, especificandoo comportamento que deve ser objeto de reprimenda.
PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade Civil. Função Punitiva. Função Preventiva. Responsabilidade Objetiva. Culpa.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A Chamada Multifuncionalidade da Responsabilidade Civil. 3 O Papel da Culpa e a Responsabilidade Objetiva. 4 A Responsabilidade Objetiva X a Função Punitiva: Institutos Incompatíveis?. 5 Conclusão. 6 Referências.
1 Introdução
A chamada multifuncionalidade da responsabilidade civil está em voga no cenário jurídico atual, por esta abstração, não apenas a doutrina como também a jurisprudência se inclina a reconhecer – não sem respeitadas vozes opositoras – que o Direito Privado não se resume àquele seu conteúdo limitado de reparar ou compensar a vítima pelos danos sofridos, tratando-se ainda de um instrumento hábil a promover a expropriação de lucros ilícitos, a prevenção de danos e a punição de condutas lesivas.
Muitos dos opositores da expansão das funções da responsabilidade civil, em especial os críticos do seu caráter punitivo, argumentam, entre outros motivos: a ausência de previsão legal, o descabimento do bis in idem, a vedação ao enriquecimento sem causa, ou, ainda, sua incompatibilidade com a figura da responsabilidade objetiva, instituto pelo qual o ordenamento jurídico autoriza o ressarcimento de um prejuízo sofrido, independentemente da investigação da culpa da conduta do ofensor.
Sobre a responsabilidade objetiva, se argumenta que a evolução da teoria da culpa para a teoria do risco afastou definitivamente do Direito Privado a incumbência de atuar sobre comportamento lesivo, cuja competência estaria restrita ao Direito Público, por meio dos sistemas de responsabilidade jurídica penal e administrativa.
Dentre os diversos fundamentos que se opõem a uma função reguladora de condutas pela responsabilidade civil, elege-se, como objeto de estudo deste trabalho, sua alegada incompatibilidade com a responsabilidade objetiva. A importância desse tema se destaca porque, embora não raro se argumente a teoria da culpa como regra e a teoria objetiva como exceção, o judiciário se encontra abarrotado de litígios envolvendo relações de consumo, acidentes de trabalho, responsabilidade da Administração Pública, entre outras hipóteses em que as indenizações podem ser arbitradas independentemente da existência de culpa.
Desde logo, cumpre ressaltar que este artigo não pretende de forma alguma abarcar todos os posicionamentos favoráveis ou contrários à multifuncionalidade da responsabilidade civil, o que certamente não seria suficiente neste espaço. O objetivo deste trabalho limita-se especificamente a investigar se os contornos evolutivos que culminaram no instituto da responsabilidade objetiva configuram ou não óbice ao reconhecimento das funções chamadasde punitivas e/ou preventivas da responsabilidade civil.
Adota-se o método dedutivo, a partir de pesquisa bibliográfica de autores
nacionais e estrangeiros. O trabalho será dividido em três seções: a primeira, para apresentar algumas divergências sobre o papel da responsabilidade civil; a segunda discorrerá sobre o papel da culpa e a importância da responsabilidade objetiva; por fim, a última seção será dedicada a responder se efetivamente há ou não uma incompatibilidade entre a função preventiva e punitiva da responsabilidade civil e a imputação objetiva.
2 A Chamada Multifuncionalidade da Responsabilidade Civil
O sistema de responsabilidade civil integra o ramo do Direito Privado e situa-se como espécie de responsabilidade jurídica, classicamente vocacionada ao reestabelecimento do equilíbrio rompido por um dano, obrigando o responsável por esse desequilíbrio a reparar ou compensar os danos provocados dirigidos contra o patrimônio material ou imaterial do ofendido. A responsabilidade civil costuma ser apontada como um dos ramos mais controvertidos na doutrina, não sendo nem mesmo o seu próprio conceito pacífico, muito disso pela dificuldade em identificar o seu fundamento em razão da dicotomia entre a teoria subjetiva da culpa e a teoria objetiva da responsabilidade sem culpa (PEREIRA, 2018, p. 11-13).
Tradicionalmente, a responsabilidade civil consistiria na justa medida que permite compelir o agente causador do dano a restituir o equilíbrio econômico-jurídico que foi quebrado em desfavor do lesado (CAVALIERI FILHO, 2002, p. 14). Trata-se do reestabelecimento do status quo ante do ofendido em relação ao dano suportado. No entanto, se prolifera na doutrina um sentimento que esse instituto se prestaria além, incorporando ainda outros encargos, como a restituição de lucros ilícitos, a prevenção e punição de condutas lesivas.
Por essa concepção, a neutralidade da responsabilidade civil, como mecanismo meramente compensatório, passa a ser abandonada para que sirva ainda como instrumento de contenção de comportamentos contraditórios por meio de desestímulo de condutas indesejáveis ao ordenamento jurídico, por meio de penas civis e satisfação de pretensões restitutórias (ROSENVALD, 2019, p. 527).
Essa tentativa de conferir novas tarefas à responsabilidade civil, obviamente não se encontra pacífica na doutrina. No que concerne a função restitutória, Gustavo Tepedino (2020, p. 03) avalia que não cabe à responsabilidade civil demover o lucro ilegitimamente obtido do patrimônio do ofensor, atribuição que seria conferida ao instituto do enriquecimento sem causa, pois, enquanto o primeiro se dirige a reparar integralmente o dano sofrido pela vítima, este último seria a figura jurídica adequada para remoção do patrimônio resultante do enriquecimento ilícito. Interessa mais a este trabalho as funções chamadas de “punitivas”, “preventivas”, ou, ainda, “pedagógicas”, estas irradiam efeitos exclusivamente dentro do campo das indenizações extrapatrimoniais1 e se dirigem às condutas lesivas, possuindo ampla aceitação na doutrina e na jurisprudência brasileira.
Nesse sentido, o Enunciado nº 379, da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, dispõe que a redação aparentemente restritiva do caput do art. 9442 do Código Civil não afasta a possibilidade de se reconhecer a função punitiva ou pedagógica da responsabilidade civil.
Entre os doutrinadores que exaltam a possibilidade da responsabilidade civil atuar no constrangimento do comportamento, pode-se citar: Sergio Cavalieri Filho (2012, p. 106): “(…) da mudança de paradigma da responsabilidade civil e atende a dois objetivos bem definidos: a prevenção (através da dissuasão) e a punição (no sentido da redistribuição”; Caio Mario da Silva Pereira (2018,
p. 14): “Na responsabilidade civil estará presente uma finalidade punitiva ao infrator aliada a uma necessidade que eu designo como pedagógica (…)”; e Maria Helena Diniz (2019, p. 127): “(…) a título de dano moral, deveria ser fixada com base em três parâmetros: caráter compensatório para vítima (…) caráter punitivo e dissuasório para o causador do dano (…); e o caráter exemplar e pedagógico para a sociedade (…)”.
Embora parte da doutrina sustente a função preventiva desvinculada da função punitiva (talvez no afã de superar o argumento da ausência de previsão legislativa sobre a matéria3), alia-se ao posicionamento de autores como Daniela Courtes Lutzky (2011, l. 5481), no sentido que ambas possuem objetivos interligados, tal qual as duas faces da mesma moeda, pois a punição tende a prevenir e a prevenção se dá por meio de uma punição. Nesse contexto, em relação a essas finalidades, admite-se para fins de estudo, que elas operam por meio do binômio: prevenção/punição.
Conferir aos danos morais uma função punitiva/preventiva, embora tenha conquistado muitos adeptos, encontra resistência em outra parte da doutrina. Em sentido contrário, portanto, Maria Celina Bodin de Moraes (2017, p. 258-264) apresenta uma série de ressalvas sobre a aplicação dos punitive damages, originais da cultura anglo-saxã, e sua adaptação mal desenvolvida e acrítica no âmbito do direito brasileiro, ressalvando que esse conteúdo deveria ser reservado para situações bastante específicas4, sob pena de violação ao princípio da legalidade, da ausência das mesmas garantias substanciais e processuais do Direito Penal e a incorrência no bis in eadem, pela dupla punição da conduta em sede civil e penal.
Argumenta-se, ainda, que embora louvável a intenção de proteção das vítimas e a prevenção contra reincidências de comportamentos danosos, a atuação punitiva ou pedagógica do dano moral deve ficar restrita às políticas públicas e ao campo da responsabilidade jurídica administrativa, na medida em que a finalidade punitiva extrapola o campo e a dogmática da responsabilidade
civil (TEPEDINO, 2020, p. 51-52). Ainda mais incisivo, Anderson Schreiber (2017, p. 213) sustenta que:
“A incorporação dos punitive damages pela prática judicial brasileira traz, ainda, consideráveis inconsistências face ao princípio de proibição ao enriquecimento sem causa – já que a quantia paga a título de punição vem, inexplicavelmente, atribuída à vítima –, além de ferir frontalmente a dicotomia entre ilícito civil e ilícito penal, aplicando penas sem balizamento legal, sem as garantias processuais próprias e sem a necessária tipificação prévia das condutas reprováveis. Por fim, a indenização punitiva não raro se mostra ineficaz em seu próprio intuito, uma vez que ‘na responsabilidade civil, nem sempre o responsável é o culpado e nem sempre o culpado será punido (porque ele pode ter feito um seguro)’.”
Além disso, sustenta-se, ainda, que a função punitiva/preventiva seria incompatível com o sistema de responsabilidade objetiva, na medida em que esta dispensa a análise da presença de dolo ou culpa, exigindo apenas o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado, sendo que o que interessa à função punitiva seria justamente o juízo de reprovabilidade da conduta (LACERDA, 2017, p. 144), o que será mais bem analisado na seção adiante.
Algumas outras considerações, antes disso, são significativamente relevantes quando se fala no caráter punitivo/preventivo da responsabilidade civil. A primeira delas concerne ao fato de alguns autores, com razão, advertirem acerca de uma diferença entre pena privada e pena civil. Neste sentido, Nelson Rosenvald (2013, p. 46) pondera que enquanto as penas civis “são marcadas objetivamente pela reserva legal, taxatividade, indisponibilidade e excepcionalidade e subjetivamente pela pessoalidade e intransmissibilidade”, em contrapartida, nas penas privadas “há uma relativa liberdade de conformação das partes, pois o controle judicial no caso concreto apenas se realizará ex post (sucessivamente), no que tange à proporcionalidade da pena com relação aos danos”.
Atentar-se para essa distinção mostra-se necessário porque as penas privadas são características inerentes e, até mesmo, corriqueiras no âmbito do Direito Civil, como as cláusulas penais e as astreintes, inexistindo objeção da doutrina em assimilar esses mecanismos sancionatórios.
Nesse sentido, parece efetivamente adequado, em razão de sua natureza, que as indenizações preventivas/punitivas se insiram no contexto das penas civis, “por meio do qual o sistema jurídico objetiva precificar uma conduta censurável à ordem social, prescindindo absolutamente de liame com o aspecto reparatório dos efeitos desta conduta” (ROSENVALD, 2013, p. 47). A segunda observação diz respeito ao fato que, embora a tradução literal do termo punitive damage signifique “dano punitivo”, parece mais adequada a expressão “indenização punitiva”, na medida em que quem assume o caráter punitivo não é o dano, mas a indenização arbitrada ao seu autor (SCHREIBER, 2015, p. 211). A terceira e, talvez, mais importante consideração, diferentemente do modelo norte-americano, no direito brasileiro, embora se diga que o valor arbitrado possui um escopo compensatório e punitivo, as indenizações ordinariamente são arbitradas de forma complessiva.
Na atividade judicial brasileira, quando se fixa uma indenização por danos morais, diz-se da sua “base de cálculo”, que esta levou em consideração o caráter compensatório e o caráter punitivo (muitas vezes, ainda, acompanhada das expressões: dissuasório, exemplar, pedagógico, terapêutico), sendo que o valor considerado para cada uma dessas naturezas remanesce como uma incógnita, haja vista que raramente discriminado, dando margem a uma repudiada arbitrariedade por parte do Poder Judiciário (MORAES, 2017, p. 37). Em complementação, Anderson Schreiber (2015, p. 211) refere que tanto no Brasil “como em outros países de tradição romano-germânica, vivese uma situação claramente anômala, na qual os punitive damages não vêm admitidos como parcela adicional da indenização, mas aparecem embutidos na própria compensação do dano moral”.
A aplicação complessiva da indenização por danos morais se torna ainda mais gravosa e efetivamente contraditória nas hipóteses em que a condenação foi concebida, por um lado, com o fundamento na teoria do risco, ressaltada sua fixação independentemente da culpa do ofensor e, de outro, maximizada com o objetivo de punir e desestimular o ofensor a reiterar a conduta “ilícita”, como pode ser percebido na jurisprudência:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C DANOS MORAIS. PROTESTO INDEVIDO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. ARTS. 14 E 29 DO CDC. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. QUANTUM. 1. A teor dos arts. 14 e29 do CPC, o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores, ainda que por equiparação, por defeitos relativos à prestação dos serviços. 2. A reparação moral tem função compensatória e punitiva. A primeira, compensatória, deve ser analisada sob os prismas da extensão do dano e das condições pessoais da vítima. A finalidade punitiva, por sua vez, tem caráter pedagógico e preventivo, pois visa desestimular o ofensor a reiterar a conduta ilícita.” (TJMG, AC 1.0024.12.337299-7/001, 11ª C. Cív., Rel.
Juiz Conv. Adriano de Mesquita Carneiro, DJe 15.05.2019) São justamente incoerências como a da ementa do julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais acima que fomentam a impressão de que haveria uma incompatibilidade da função punitiva/preventiva da responsabilidade civil e sua incorporação pelo ordenamento jurídico em que vigora a teoria objetiva.
O mais importante que fique claro no desfecho desta primeira parte do estudo, no entanto, é que, embora severamente criticada por alguns autores, permitir a expansão das funcionalidades da responsabilidade civil inegavelmente poderia evitar a ocorrência de violações sérias a bens e interesses jurídicos, muitas vezes, irrecuperáveis. Esse alargamento, entretanto, não pode ser realizado de forma acrítica sob pena de incorrer em incoerências insustentáveis à cientificidade do Direito. Essa é a razão pela qual, entre os diferentes argumentos contrários à incorporação do caráter punitivo/preventivo ao dano extrapatrimonial, faz-se aqui o recorte metodológico para confrontá-lo com o instituto da responsabilidade objetiva.
3 O Papel da Culpa e a Responsabilidade Objetiva
Considera-se na doutrina que uma das principais e mais notáveis evoluções desenvolvidas no campo da responsabilidade civil consistiu na substituição gradual do pressuposto da culpa para o risco. Essa concepção merece ser estudada, a partir deste momento, não apenas para confrontação da teoria do risco com a indenização punitiva, mas também porque parte da doutrina, em uma espécie de caminhar reverso, voltou a exaltar a investigação da culpa como elemento necessário para o tratamento das condutas lesivas.
O conceito da responsabilidade objetiva ingressou nos ordenamentos jurídicos modernos como fundamento da teoria do risco e pode ser concebida como a obrigação de reparar o prejuízo provocado, pelo risco da atividade desenvolvida, independentemente do fato do responsável pelo dano ter ou não agido com culpa (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 152). O surgimento da teoria do risco decorre da insuficiência da teoria da culpa, que transferia à vítima um fardo muito pesado para provar a culpa do causador do dano. Seu advento no ordenamento jurídico dividiu a doutrina
em duas correntes, de um lado, a doutrina subjetiva ou teoria da culpa e, de outro lado, a doutrina objetiva, que trata da responsabilidade sem culpa.
A discussão gira em torno do fundamento da responsabilidade civil, neste contexto: “se não padece dúvida a indagação se o ofensor é responsável, travam-se de razão os autores quando enfrentam esta outra questão: por que é responsável o causador do dano?” (PEREIRA, 2018, p. 21). Sobre a controvérsia entre essas duas correntes doutrinárias, salienta Anderson Schreiber (2015, p. 19), com referência a Alvino Lima, “a culpa tornou-se objeto do que já foi referido como ‘mais intenso dos ataques doutrinários que talvez se tenha registrado na evolução de um instituto jurídico’”.
Por muito tempo, a culpa compôs ao lado do nexo de causalidade e do dano, uma espécie de “trindade sagrada”, como pressupostos inafastáveis à configuração do dever de indenizar, sendo o primeiro filtro flexibilizado para permitir a imputação da indenização não mais a um culpado, mas a um responsável ao ressarcimento do dano. Entende-se, no cenário atual, que há uma forte tendência à objetivação, seja pela atividade jurisdicional (quando o juiz presume de forma tão definitiva a culpa do ofensor, dispensando-a para fins de responsabilização), seja por meio da atividade legislativa (como a revisão de situações de culpa presumida que foram convertidas para responsabilidade objetiva com o advento do CC/02), o que revela a diminuição da importância da culpa para ensejar o dever de indenizar (SCHREIBER, 2015, p. 31-34).
Em um sentido reverso, entretanto, parte da doutrina retoma a importância da culpa como elemento cerne para a prevenção de danos potenciais. Vale dizer, a natureza do comportamento (o grau de culpa ou o dolo) devem ser considerados para fixação da indenização de danos extrapatrimoniais. A propósito, Daniel de Andrade Levy (2012, p. 217) chega a propor a cisão da responsabilidade civil em dois braços com objetivos diferentes, argumentando que “não é mais possível prestigiar a perspectiva da vítima, sem prejudicar o autor, assim como se tornou impossível preferir a perspectiva do autor, sem prejudicar a vítima”.
O retorno à ideia de culpabilidade pode ser considerado paradoxal em relação ao fundamento atual da responsabilidade civil, em que toda a atenção é voltada para a vítima, para o credor da dívida e para a satisfação dos danos, haja vista que, se a satisfação da vítima ocorre pela punição do ofensor: “perde-se novamente o foco da responsabilidade (como reparação), e se volta à seara da retribuição – no caso, da retribuição do mal com o mal, a retaliação, incivilidade que nos orgulhamos de ter superado” (MORAES, 2017, p. 55).
Apesar disso, não se pode olvidar que a neutralidade da responsabilidade civil também incomoda, na medida em que agentes econômicos podem se valer da inimputabilidade de ações para lançar mão da comportamentos contrários ao ordenamento jurídico para maximização dos seus lucros. Nesse sentido, avalia-se que a perspectiva da doutrina no retorno da culpa não significa uma involução do sistema, mas se prestaria para trazer à tona a conduta do ofensor para então guiar o “direito das condutas lesivas” (FONSECA; LEAL, 2016, p. 133). Sem embargo, essa proposição não passa imune às críticas. A proposta de alargamento do conceito de dano, para abranger também a responsabilidade pelo comportamento que provoque “risco de dano” (LEVY, 2012, p. 146-147), foi repudiada por muitos autores que reconheceram, neste argumento, uma tese de “responsabilidade sem dano” (CARRÁ, 2018, n. p.).
O dano é considerado pela imensa maioria dos doutrinadores como condição sine qua non do dever de indenização e o último e inatingível pressuposto original da responsabilidade civil. Nesse sentido, Rui Stoco (2017, p. 173-184) não mediu palavras ao percorrer numerosos autores nacionais e internacionais para chamar a responsabilidade civil “sem danos” de “falácia e contradição”. Segundo o autor, “sem o dano poderá existir ato ilícito, mas não nascerá o dever de indenizar, de modo que a só (sic) conduta que contrarie a norma preexistente – a conduta antijurídica – não é suficiente para emprenhar a obrigação” (STOCO, 2017, p. 175). Essa questão, no entanto, não é pacífica, a responsabilidade civil como um todo está longe de ser um consenso, seja no que diz respeito à culpa, ao nexo de causalidade e ao dano e até mesmo sobre sua própria definição:
“Provavelmente, para muitos é incompreensível cogitar do emprego da expressão responsabilidade civil fora do contexto do ressarcimento de danos. De tudo se cogitaria: de uma responsabilidade sem ilícito; sem culpa; ou mesmo, em casos excepcionais de risco integral, sem o nexo causal.
Porém, jamais divorciada do dano, já que sem ele nada há a ser reparado. Este raciocínio é fundado em premissas equivocadas. Somos por demais condicionados a dogmas, quando em verdade deveríamos nos moldar ao elemento cultural. Já tivemos a oportunidade de comentar que o termo ilícito nem sempre remete à responsabilidade civil; o vocábulo sanção é polissêmico, não conduz somente a uma pena. A definição do que seja responsabilidade no direito privado também é cambiante.” (ROSENVALD, 2013, p. 91)
A discussão sobre o dano, nesse sentido, não refoge à matéria das condutas lesivas, porque um comportamento antijurídico poderia importar em um “dano” a uma esfera abstrata protegida pelo direito. Nesse sentido, infere-se da doutrina uma proposta de releitura sobre o que seria “dano ressarcível”, por não creditarem ao seu conteúdo limitação às hipóteses de diminuição ou subtração de um patrimônio jurídico (seja este de natureza patrimonial ou extrapatrimonial), mas, sim, a “violação de interesses legítimos”, independentemente, inclusive, da existência de um direito
subjetivo (AMARAL; PONA, 2014, p. 249).
Pode-se trazer à baila desse contexto a ponderação de Judith Martins- Costa (2011, p. 182), no sentido de que “o conceito de dano não é “dado”, mas “construído” e, mais ainda, é, para usar uma expressão cara aos existencialistas, um “conceito situado”. Segundo a autora, admitida uma perspectiva meramente nominalista, poderia se adotar dano tão só como prejuízo sofrido por um bem determinado, embasado na Teoria da Diferença, no entanto, se elevada a uma noção normativa ou jurídica, dano então poderia ser considerado como uma lesão a um interesse jurídico, referindo-se àquilo que uma comunidade jurídica considera digno de tutela jurídica. A jurisprudência, por vezes, se alinha a esse pensamento doutrinário, como na decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 2007, de lavra de Eugênio Facchini Neto, em uma demanda promovida contra o sistema de loteria regional conhecido como “Toto Bola”, em que, embora tenha rejeitado o pedido de indenização por perda da chance, concedeu ao autor da ação reparação pelos danos materiais sofridos e outra por danos morais, ainda que incomprovado o prejuízo extrapatrimonial sofrido, ressalvando a indefinição legislativa acerca do conceito de dano:
“Por último, esclareça-se que esta decisão não fere o disposto no art. 944 do CC (‘A indenização mede-se pela extensão do dano’). Isso porque o codificador não explicitou o que entende por dano. E no caso em tela, entende-se que se está a indenizar o ‘dano social’ causado, na esteira das experiências jurídicas contemporâneas de outros países. A expressão ‘dano’, constante do art. 944, é suficientemente elástica, portanto, para abranger também os danos sociais. Trata-se, portanto, de solução perfeitamente compatível com nosso Direito.” (TJRS, Recurso Inominado 71001249796, Rel. Eugênio Facchini Neto, Terceira Turma Recursal Cível dos Juizados Especiais Cíveis do Estado do Rio Grande do Sul, j. 27.03.07)
Como última consideração sobre a complexidade do conceito de dano, pois, como se alertou desde o início, o espaço aqui é insuficiente até mesmo para uma tratativa superficial sobre o assunto, alguns autores diferenciam a noção entre dano-evento, como a lesão a um direito subjetivo ou a um interesse juridicamente relevante, e o dano-prejuízo, que se refere à consequência patrimonial ou extrapatrimonial da lesão (FLUMIGNAN, 2015, p. 193). Ter essa distinção em mente faz-se necessário porque quando se fala na função punitiva/preventiva danos extrapatrimoniais, ela pode estar ligada a dois momentos distintos: no primeiro, “dano-evento, que pode ser na pessoa, ou no patrimônio, ou na figura social da pessoa, ou, até mesmo, em terceiro”; ou no segundo, “enquanto o dano-prejuízo, como consequênciadaquele, somente pode ser patrimonial ou não patrimonial (dano moral)” (AZEVEDO, 2004, p. 33)5.
Poderia se dizer, com esta leitura, que a responsabilidade civil poderia atuar tanto como instrumento de contenção de comportamento lesivo, ao inibir, pela aplicação de uma pena civil, o dano-evento, além da tradicional compensação do dano-prejuízo, protegendo, dessa forma, a ocorrência de lesão a bens jurídicos irrecuperáveis. Nesse sentido, dentro do direito comparado, cumpre destacar que Suzanne Carval (1995, p. 01) já referia que muitos juristas reconheciam na responsabilidade civil um potente instrumento de sancionar e dirigir comportamentos humanos, prevenindo, por dissuasão, a prática de atos prejudiciais, ou, nas palavras da autora: “(…) le droit de la responsabilité puise son originalitédans son aptitude à sanctionner la violation de nombreuses règles de comportement et donc, à prévenir, par la dissuasion, la commission d’actes préjudiciables”6.
Assim, a defesa em relação à culpa como regra geral da responsabilidadecivil no âmbito dos atos ilícitos dolosos, como nas hipóteses da má-fé, das condutas reiteradas, das fraudes, etc., deve-se à tentativa de conjugar um alargamento da área de responsabilidade (produto da erosão de intoleráveis limbos de imunidade), com uma reavaliação da função preventiva-punitiva de responsabilidade civil (BUSNELLI, 1988, p. 15). A partir do contexto apresentado, sem olvidar novamente de outras premissas que envolvem o tema, em especial às objeções legislativas e à destinação da indenização do “dano-evento”, admite-se que a responsabilidade civil possui o potencial de controlar condutas lesivas e proteger contra danos injustos, mormente nos casos em que a gravidade do dano-prejuízo, também chamado de dano-consequência, se mostra irreparável, como nas hipóteses de ofensas dirigidas ao patrimônio ambiental, cultural, ou danos graves e
irreversíveis à saúde humana.
Ressignificada a importância da culpa, ou, ainda, da análise da conduta lesiva, cumpre retornar à reflexão sobre a objetificação da responsabilidade civil. Nesse sentido, inobstante o argumentado até aqui, desde logo, entende-se que qualquer indagação pela reconsideração acerca da evolução da teoria do risco nos ordenamentos jurídicos deve ser sumariamente rejeitada. Isso, porque desenvolver atividade de risco não consiste no único fundamento da responsabilidade objetiva, existindo, inclusive, outras hipóteses de responsabilidade sem culpa, como, por exemplo, o tutor em relação aos atos do tutelado e do curador pelo do curatelado, havendo, nesses casos, atribuição de responsabilidade a quem exerce função socialmente útil, pela necessidade de assegurar à vítima a reparação de danos por força da solidariedade social (TEPEDINO, 2020, p. 114).
Dessa forma, pode-se admitir que, embora o risco tenha sido o norte formador da teoria da responsabilidade objetiva, o fundamento intrínseco que garante sua ampla aceitação nos ordenamentos jurídicos decorre sobremaneira dessa perspectiva solidária. Como reforço a esse argumento, Anderson Schreiber (2015, p. 30) pontua que sua verdadeira essência na contemporaneidade não é a responsabilidade por risco, “mas a de uma responsabilidade independente de culpa ou de qualquer outro fator de imputação subjetiva, inspirada pela necessidade de se garantir reparação pelos danos, de acordo com a solidariedade social”.
Portanto, em que pese a discussão envolvida, a responsabilidade objetiva seguramente não eliminou ou substituiu a responsabilidade subjetiva, culpa e risco convivem no ordenamento jurídico, tendo o primeiro, por fonte, o ato ilícito, e o segundo, uma opção legislativa de alocação de riscos a certos agentes econômicos ou certas atividades (TEPEDINO, 2020, p. 114). O modelo dualista, ou seja, a coexistência lado a lado da responsabilidade civil subjetiva e as normas reguladoras da responsabilidade objetiva, apresenta-se como mais adequado, preponderando a tutela da vítima pela ampliação dos mecanismos de imputação de responsabilidade (TEPEDINO, 2020, p. 07).
Não se pode olvidar, entretanto, a importância do papel da culpa e as possibilidades existentes no Direito Privado quanto ao controle dos comportamentos lesivos. Essa passagem do estudo, embora sucinta, quer apresentar três conclusões: a importância do instituto da responsabilidade objetiva em razão do seu fundamento implícito na solidariedade, cuja revisão poderia importar em retrocesso social, o que possui vedação constitucional7; a potencialidade da responsabilidade civil em prevenir prejuízos irrecuperáveis pelo tratamento das condutas lesivas; e a necessidade de desenvolver uma operabilidade coesa pela convivência da teoria da culpa e a teoria objetiva.
Assim, a partir dessas premissas, da inegável significância da teoria do risco para a sociedade contemporânea e das problemáticas envolvendo a possibilidade de penalização de comportamentos contraditórios ao direito, a despeito das demais numerosas questões que atormentam o tema, chega-se ao terceiro e última seção desta exposição, a fim de confrontar se a tendência à objetivação da responsabilidade pode ser considerada um impeditivo à aplicabilidade da função punitiva/preventiva dos danos extrapatrimoniais.
4 A Responsabilidade Objetiva X a Função Punitiva: Institutos Incompatíveis?
Com o assente dos pontos já ressaltados, necessário ressaltar que nem sempre a evolução de um determinado instituto jurídico mantém-se totalmente compatível com outras premissas que o cercam, razão pela qual é preciso ter cuidado com a movimentação doutrinária existente entre os fundamentos e as funções da responsabilidade civil.
A responsabilidade objetiva progrediu, como aduzido, não só pela teoria do risco, mas principalmente por causa do seu fundamento na solidariedade social e mitigou não a importância, mas, sim, a relevância da conduta culposa para ensejar o dever de indenizar. Por outro lado, a transformação que se pretende com a multifuncionalidade da responsabilidade civil, consiste na retirada
da sua posição de neutralidade, admitindo-se a virtude do Direito Privado como ferramenta hodierna para repressão e dissuasão de comportamentos contraditórios ao ordenamento jurídico. Não se trata de um retorno à teoria subjetiva como já se afirmou, se trata de como operacionalizar a coexistência entre estas duas importantes correntes, sem incorrer em contradições descabidas, como no aresto do Tribunal de Justiça de Minas Gerais apresentado exemplificativamente. Em função disso, não são poucos os autores que defendem que o desenvolvimento do sistema da responsabilidade objetiva reservou ao sistema de responsabilidade civil apenas o ressarcimento de danos.
Isso, porque a função preventiva/punitiva da responsabilidade civil parte da premissa de que é necessário avaliar e censurar uma conduta lesiva, forçando o agente a abandonar uma posição potencialmente causadora de danos e adotar uma postura diligente (um dever de cuidado). A responsabilidade objetiva, por seu turno, implica em reconhecer que o causador do dano irá responder pelas suas consequências, tenha ou não adotado os cuidados necessários, tenha ou não agido com culpa no evento danoso.
Nessa perspectiva, parte da doutrina adverte sobre as restrições das hipóteses de invocação dos punitive damages “em face da incompatibilidade desse instituto com o nosso sistema jurídico, sendo que a sua utilização, mesmo como simples argumento, particularmente inadequada nos casos de responsabilidade objetiva (…)”, haja vista que a própria natureza destas situações não abarcaria a discussão de culpa (SANSEVERINO, 2010, p. 76). Em sentido semelhante, Judith Martins-Costa e Mariana Pargendler (2005, p. 23-24) avaliam que as hipóteses de imputação objetiva são inconciliáveis com as indenizações punitivas e que estas somente poderiam abranger situações em que houver responsabilidade derivada de imputação subjetiva:
“No segundo caso, (punitive damages) só poderá abranger a responsabilidade derivada da imputação subjetiva, sob pena de incontornável contradição: se o que é avaliado (para fixar o montante da indenização) é a maior ou menor gravidade da conduta) do autor do dano e o maior ou menor grau de reprovação ético-jurídica à conduta, como fazê-la incidir às hipóteses de imputação objetiva, para a qual o exame da conduta do agente é despiciendo (examinando-se tão só a ilicitude, o dano, a imputabilidade e o nexo causal).” (Grifos do original)
No entanto, como se pretendeu argumentar ao longo deste estudo, limitar a função preventiva/punitiva da responsabilidade civil somente a casos que seriam solucionados pela figura da responsabilidade subjetiva, importaria vez menos identificáveis dentro do cenário jurídico atual. Essa restrição, por consectário, atingiria justamente algumas das circunstâncias na qual a doutrina pondera como mais críticas e importantes, como nas lesões contra direitos difusos ou nos danos provados contra o patrimônio ambiental, em que a teoria do risco é aplicada por excelência.
Assim, sustenta-se que os mecanismos modernos disponíveis para o ressarcimento de danos que contemplam a responsabilidade civil se mostramfrequentemente inidôneos, exigindo um refinamento de técnicas necessárias para sua prevenção (PERLINGIERI, 2012, p. 32). O agravo dirigido a determinados bens jurídicos, como ao patrimônio ambiental, ao patrimônio cultural, à saúde humana, não apenas é irreversível, como ainda pode comprometer de forma gravosa o mínimo existencial de determinada pessoa, de uma determinada coletividade ou da própria espécie
humana como um todo.
Adote-se, como exemplo, uma empresa que fature anualmente milhões, ou até mesmo bilhões de reais em lucros todos os anos, mas que, para tanto, negligência de forma reiterada normas de proteção ambiental, poluindo ou contaminando lençóis freáticos com resíduos tóxicos, comprometendo, muitas vezes de forma definitiva, um recurso indispensável à vida humana e cada vez mais escasso; ou, ainda, madeireiras, grileiros, latifundiários que devastam a floresta amazônica, aproveitando o relaxamento de políticas públicas governamentais, bem como a insuficiência e ineficiência do Estado na fiscalização de desmatamento e queimadas.
Nem sempre a Administração Pública dispõe de meios suficientemente eficientes (como capacidade fiscalizatória), ou suficientemente flexíveis (haja vista o formalismo exacerbado e o engessamento imposto ao administrador pelo princípio da legalidade), que podem ser atribuídos à responsabilidade civil, instrumento mais dinâmico e hábil para, dentro do caso concreto, coibir a prática de condutas lesivas. Por se tratar, destarte, do instituto mais adequado para dar uma solução eficiente ao caso concreto frente a um dano (no seu sentido normativo), não apenas pelo ressarcimento dos prejuízos provocados, mas pela sua capacidade de correção e/ou inibição de comportamentos nocivos ao ordenamento jurí-dico, bem como prestigiar os progressos havidos no campo da solidariedade com as vítimas de danos injustos, parece necessário, no mínimo, refletir se as objeções à compatibilidade entre estes instrumentos jurídicos se mostram realmente plausíveis.
Nesse contexto, busca-se uma solução estrutural que permite compatibilizar ambos os institutos jurídicos, ao distinguir o que é função da responsabilidade civil e o que é função dos critérios de imputação:
“Lá se quer designar o tipo de problema que afeta o sistema social e o tratamento que a ele deve ser dado. Já os singulares critérios de imputação se relacionam às condições de operatividade do dispositivo aquiliano, designando as diferentes lógicas que o sistema utilizará para fazer prevalecer as suas razões. Esta distinção é relevante por mostrar que a função da responsabilidade civil permanece independentemente da função de seus critérios de imputação. A circunstância da responsabilidade civil se articular como subjetiva ou objetiva demonstra que a sua função geral não
se identifica com a sua ratio sancionatória.” (ROSENVALD, 2013, p. 88)
Desse modo, demonstra-se que, embora se eleja a via objetiva para dar solução a um determinado litígio de danos, independentemente, portanto, da análise da culpa, isso não significa que o comportamento do lesante não pode ser avaliado. Na verdade, muitas das vezes efetivamente o são. Na responsabilidade objetiva, a culpa pode ou não existir, sendo ela irrelevante para que se configure o dever de indenizar. A excludente de responsabilidade nessas hipóteses está restrita à existência ou não da relação decausalidade, ou seja, caso fortuito, força maior, fato exclusivo da vítima ou deterceiros (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 150).
Mas, além do dever normativo de indenizar, não há impedimento qualquer para que se avaliem os critérios subjetivos que provocaram aquele dano. O que ordinariamente se observa, sem qualquer embargo da doutrina ou da jurisprudência, é que, mesmo nos casos de responsabilidade objetiva, o comportamento culposo, no mais das vezes, é naturalmente investigado. Ilustra-se, exemplificativamente, um pedido de indenização por responsabilidade civil com fulcro no parágrafo único do art. 927 do CC/02. Neste caso, o lesado requer seja reconhecido o risco criado para formação da responsabilidade objetiva, no entanto, na imensa maioria das vezes, pretende-se ainda (até porque corre-se o risco de não ser reconhecida a hipótese de responsabilidade objetiva) o reconhecimento da culpa do ofensor.
Nesse contexto, refere Antônio Junqueira de Azevedo (2009, p. 380) que “até mesmo nos casos de responsabilidade objetiva o juiz pode perfeitamente fazer o exame do dolo ou da culpa grave (a culpa simples, para as nossas considerações, aqui não importa)”, haja vista que a teoria do risco não inviabilizou a responsabilidade subjetiva, podendo a culpa, inclusive, ser cumulada como causa de indenização nos casos de responsabilidade objetiva.
Nessa perspectiva, mesmo em casos de responsabilidade objetiva, se restar comprovado que o lesante agiu com culpa grave ou dolo, não haverá óbice para indenização punitiva “porque a responsabilidade objetiva não é sinônimo de responsabilidade sem culpa, mas é caso em que a responsabilidade prescinde da culpa, dispensando a prova desta última” (LUTZKY, 2011, l. 5522). No campo da responsabilidade consumerista, o norte-americano David
Owen (1976, p. 1269-1270), em um artigo publicado sobre Punitive Damages in Products Liability Litigation10, anotou que a doutrina dos punitive damages não é incompatível com a figura da responsabilidade objetiva por duas razões:
“(…) strict tort theory has never purported to delimit the remedies that might be appropriate if a plaintiff ’s accident is attributable to some aggravated fault of the manufacturer11; (…) the incompatibility argument rests upon the invalid assumption that punitive damages claims must be established by facts identical to those supporting the underlying claim for compensatory damages.”12
Em outras palavras, a teoria da responsabilidade objetiva não limitou o campo de atuação da responsabilidade subjetiva, esses institutos não concorrem entre si. A teoria objetiva prescinde da culpa para gerar o dever de compensar o prejuízo provocado, o que não significa que ela não existiu. Além disso, a indenização pelo comportamento pode ter natureza distinta daquela arbitrada
pelo dever de indenizar. A primeira decorre justamente em razão de uma conduta antijurídica repudiada pelo ordenamento. A segunda diz respeito à satisfação da vítima, com fundamento, como se viu, no dever de solidariedade. Vale dizer, em determinadas situações, que se poderia indenizar tanto o danoevento (conduta antijurídica) como também o dano-prejuízo (consequência econômica patrimonial ou extrapatrimonial da conduta antijurídica).
Cumpre ressaltar, mais uma vez, que não se ignora a necessidade apontada pela respeitada doutrina sobre a necessariedade de “cautela na utilização da responsabilidade civil como instrumento regulatório de comportamentos não lesivos, ainda que ilícitos, que, sem embargo, deveriam ser objetos de atuado do Estado-Administração, e não do Estado-Juiz, provocado pelo particular” (RUZYK, 2020, n.p.). A ausência de regulamentação própria sobre a matéria torna sua aplicabilidade tortuosa, mesmo porque não há consenso (nem norma) sobre o titular13 de uma eventual indenização por um comportamento ofensivo ao Direito que não gere um prejuízo efetivo.
Retornando à possibilidade de verificação de uma conduta lesiva, mesmo nos casos em que há responsabilidade objetiva, mostra-se evidente, contudo, nas ocasiões em que não for realmente possível a identificação da culpa do ofensor pelos danos provocados, a indenização a ser arbitrada deve ser limitada a um conteúdo exclusivamente compensatório. Nesse contexto, Flavia Portella Püschel (2007, p. 22) assevera que: “A punição só faz sentido se a conduta do autor do dano pode ser considerada reprovável, o que não ocorre se não há culpa. Para condenação punitiva em caso de responsabilidade objetiva, seria preciso, então, provar que, no caso concreto, houve culpa”.
Conclui-se não se sustentar o argumento da incompatibilidade da função preventiva/punitiva da responsabilidade civil nos ordenamentos jurídicos em que vigoram a responsabilidade objetiva. As indenizações punitivas não são coerentes apenas naquelas hipóteses nas quais não foi possível identificar o comportamento do causador do dano, entretanto, na medida em que inexiste
qualquer impedimento para averiguação da culpa, mesmo nas situações em que o dever de reparar se resolva pela teoria do risco, não apenas parece adequado, como necessário, encontrar meios para que o sistema de responsabilidade civil se preste ainda a censurar condutas antijurídicas, em especial, aquelas reiteradas e ultrajantes, capazes de provocar danos irreparáveis, muitas vezes dirigidos a determinados bens jurídicos que podem determinar, inclusive, a preservação digna da espécie humana.
5 Conclusão
O campo da responsabilidade civil permanece em aberto para inúmeras discussões doutrinárias, seja no que diz respeito ao seu conceito, seja no que diz respeito às suas funções, seja nas controvérsias envolvendo seus pressupostos clássicos, ou mesmo no que diz respeito às suas configurações mais contemporâneas que intrigam a noção de dano, o dano injusto e nexo de imputação.
Não se pode negar, entretanto, que há um caminho aberto ao reconhecimento da multifuncionalidade da responsabilidade civil. Se há obje-ções metodológicas ou até mesmo legislativas para a sua aplicabilidade, não se discute sua potencialidade enquanto ferramenta de contenção de danos, transcendendo sua característica mais restritiva, voltada apenas a reparação ou a compensação. Se a responsabilidade civil pode servir como instrumento de fundamental importância para prevenção de condutas antijurídicas, por que não encontrar caminhos para sua realização, ao invés de se apegar em dogmas construídos por parte da doutrina e da jurisprudência, que talvez não se fazem mais adequados à realidade social hodierna? O sistema de responsabilidade civil é um sistema em constante construção, reflexo, desde os primórdios, dosentimento de justiça vigente a sua época.
Nesse aspecto, a objetivação da responsabilidade encontra grande respaldo na solidariedade social ao não permitir que a vítima de uma ofensaseja prejudicada por uma conduta danosa e não se contrapõe à atuação da responsabilidade subjetiva, que procura proteger o indivíduo e, mais ainda, a coletividade contra comportamentos nocivos, potencialmente causadores de prejuízos, muitas vezes irrecuperáveis.
Em conclusão, a responsabilidade objetiva somente será incompatível com as chamadas funções punitivas/preventivas, nas hipóteses em que não
se investigou ou não foi possível investigar, concomitantemente o comportamento causador do dano. O dever de indenizar independentemente de culpa
não significa que ela não existiu, ou, então, que não possa ser valorada pelo sistema de responsabilidade civil. Demonstra-se, nesse sentido, que o arbitramento de uma indenização por meio de um nexo de imputação objetivo não necessariamente exclui a possibilidade da aplicação de uma pena civil.
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